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"O SELVA surgiu do apagamento das fronteiras, da multiplicidade dos meios, da urgência da arte, da pulsação da literatura, da inabilidade de estancar o que é: a Selva conjuga o verbo ESTAR. Queremos divulgar nossa produção e dar espaço a novas vozes, englobando não só os suportes midiáticos comuns, mas mostrando que as novas formas de arte já dialogam entre si em harmonia, seja na literatura, no graffiti, teatro ou em revistas digitais.
Colecionamos micro-universos, formando um organismo vivo através de blogs pessoais, grupais ou focados em algum assunto específico, portfolios digitais, fóruns de discussão ou websites."
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Está quase na hora do sorteio, e Dora não cabe em si de ansiedade. O rádio ligado na cozinha desde cedo para não perder nenhum detalhe, com o volume baixinho para não incomodar os patrões. Imagina como seria sua vida e de sua família com o dinheiro do prêmio, enquanto transforma uma calça de seu Afrânio em bermuda para Paulo, o filho gatinho da família Toledo de Albuquerque.
O locutor anuncia e ela, tremendo, confere. Bingo! Ela é a ganhadora. E ganhou sozinha!
Dora começa a gritar e atrai a atenção de Dona Lúcia, Seu Afrânio e Paulo que, completamente pendurados com dívidas e vivendo somente de pose e vento, pensam na melhor forma de se aproveitar da situação: casar Paulo com Dora e passar a mão na grana.
A notícia se espalha rapidamente por todas as empregadas e patroas do condomínio. Pedidos de empréstimo, gastos e lembrancinhas começam a surgir, além da súbita e evidente inveja pela probabilidade do matrimônio.
Dora pensa na possibilidade de casamento com o filho dos patrões, mas não esquece de sua antiga atração por Aguinaldo, o prestativo bicheiro, charmoso e canastrão, que a abraça firme enquanto dançam no salão ao som do forró.
Antes de Aguinaldo, Dora fora apaixonada por Emiliano. De tanto esperar o namorado se pronunciar, pedi-la em casamento e formarem uma família feliz, se inscreveu em um programa de auditório, sem que Emiliano soubesse o motivo da ida dos dois ao estúdio. Um robusto apresentador o encosta na parede e o torna vergonha em cadeia nacional por enrolar moça honesta, prometer mundos e fundos, se aproveitar da garota e não assumir o compromisso. Diante da derradeira pergunta, Emiliano diz aceitar sim se casar com Dora, mas assim que sai do estúdio, a abandona. Dora volta para casa chorando, de carona no caminhão baú com os móveis e eletrodomésticos doados em nome do programa, para um casamento que não iria ocorrer.
Dona Lúcia, peruíssima assumida e endividada, se afunda ainda mais nos cartões de crédito, procurando tornar a futura nora mais apresentável para a sua roda de amigas emergentes. Hoje em dia é “out” ser pertencente às famílias quatrocentonas, herdeiras por décadas de uma fortuna que começou sabe-se lá como. O “in” atualmente é ganhar prêmios instantâneos, enriquecer com raspadinhas, jogo do bicho. Atualizem-se, amigas. Novos ricos ganham programas de televisão, espaços nas colunas sociais, festas badaladas, tudo sem esforço. Isso sim é vida boa.
Paulo se mostra cada dia mais carinhoso com Dora. Antes a esnobava, era verdade, mas com a intenção de esconder seus verdadeiros sentimentos. Achava que nunca uma mulher como ela iria olhar para alguém como ele, que mesmo forte e sarado, não era reconhecido como exemplo de generosidade e inteligência. Boba Dora não era, mas fingiu que acreditou.
Dora fica conhecida por todos e passa a receber os melhores tratamentos. Seus pais viram visitas importantes na casa dos antigos patrões, agora sua futura família. Nada mais de lavar, passar, cozinhar. Aprendeu a se vestir, a comer à mesa com todos, tudo ao mesmo tempo agora, e olha que ela ainda nem reclamou o prêmio.
O prêmio. Estava na hora de ir buscá-lo. O futuro marido se oferece para ir junto, garantir sua segurança (do dinheiro, é claro). O patrão oferta o carro, e ele como motorista, por comodidade e praticidade. Dona Lúcia se dispõe a acompanhá-la ao banco, para orientar sobre as melhores aplicações e rendimentos.
Dora não consegue nem mais respirar sozinha. Não lhe deixam para nada, vive sob vigilância, cobranças, pedidos. Sente falta de sua antiga vida, de seu trabalho, das noites no forró, de Aguinaldo.
Aguinaldo. O único que não a cobrou, apertou, pediu. A camisa aberta três botões, a corrente fina de ouro, o braço apertando sua cintura como lata de cerveja.
Na calada da noite Dora escapa, procurando sua antiga liberdade, sua paz, o cheiro do sabonete de Aguinaldo. Leva consigo os presentes, sapatos, roupas, jóias, deixando somente o bilhete. Quem o achasse, poderia fazer o que bem entendesse.
Os Toledo de Albuquerque não tiveram tempo de praguejar a fuga de Dora, ao se depararem com o desejado pedaço de papel. Voando, apresentaram-se como os felizes ganhadores do prêmio acumulado e cobiçadíssimo. Àquela altura, Dora e Aguinaldo já estavam longe, e não puderam ver a cara de decepção e raiva dos patrões ao descobrirem que um dos números não batia.
O primeiro beijo de Dora fora aos 11, não aos 12. Uma pequena confusão.
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Que haverá com a lua que sempre que a gente a olha é com o súbito espanto da primeira vez?
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- Psiu! Quieta!
- Mas eu tô com fome!
- Dá logo essa pipoca prá menina, Adelaide.
- Peraí. Ai, como ele é lindo...
Adelaide, nossa heroína, é uma jovem decidida, curiosa e romântica. Do alto de seus incompletos 16 anos, seu maior sonho é sair de sua cidadezinha e viver uma vida de estrela de cinema, ao lado, é claro, de um ator incrivelmente famoso. Um desejo nada incomum na cabecinha fértil de uma jovem sonhadora.
Seu refúgio são as salas do Cine Marechal. Nelas, seu pensamento voa e ela se imagina vivendo todas as aventuras, curtindo todos os momentos românticos e de grande paixão, contracenando com astros e estrelas tão conhecidos e familiares, num mundo onde todos falam inglês, é claro, inclusive ela. Sua admiração pelo mundo do cinema é tão grande, que muitas vezes Adelaide confunde realidade e fantasia.
Suas melhores amigas são Neide e Cidinha, que dividem com Adelaide o gosto pela sétima arte, mas muito mais realistas e interessadas nos moçoilos da cidade mesmo.
- Ai, que tédio!
- Adelaide, pára de reclamar da vida, mulher.
- É, Adelaide. A vida aqui é tão boa, tranqüila...
- Esse é o problema: não acontece nada nessa porcaria de cidade! Ai, como eu queria que um grande astro viesse me buscar aqui, me tirar desse fim de mundo!
- Adelaide, Alegria não é uma cidade tão ruim assim de se viver.
- Alegria? Essa cidade é uma tristeza de dar dó!
- Ai, Adelaide!
Além disso, Cidinha e Neide partilham entre elas o gosto pela mais marcante paixão nacional: a televisão. Acesso às novelas, notícias, programas humorísticos, logo ali, na sala de suas casas, sem se preocupar em que roupa vestir para agradar os brotinhos. Só mesmo Adelaide ainda não se interessara pela “caixa mágica”, sempre pensando em seu grande amor da semana, ou da última sessão de cinema.
Adelaide é uma moça bonita mas de temperamento forte, como Catarina, de “A Megera Domada”. Ela quer escolher seu amor, não ser escolhida. Alguns já tentaram, mas ela não cede. Entremeando realidade e fantasia, ela vai levando sua vida até que um dia um grande astro a leve dali. Sua persistência em seu desejo é tão intensa, que Adelaide humilha o pobre do aprendiz de padeiro Pereirinha, filho do senhor Pereira. O triste rapaz a segue por todos os lugares, suplicando um olhar, um gesto, uma palavrinha, e nada. Ao seu lado, Adelaide imagina uma vida inteira atrás do balcão, com seus filhos se tornando padeiros, seus netos...
Adelaide preocupa a mãe, Dona Nair. Mal come, vive suspirando pelos cantos. Toda semana, um nome de homem diferente: Guilhermo Alejandro, Felipe Anselmo, Mateus Ventura, Lourenço Aguiar... e sempre apaixonada por todos. Mal come. Diz que se alimenta com o seu amor...
- Menina, amor só enche barriga quando a moça engravida. O que você andou aprontando, Adelaide?
- Ai, Dona Nair!
Sua mãe faz o que pode para conter as loucuras da filha. Vive ajoelhada em frente ao seu altar para Santa Rita de Cássia, com seu terço na mão, pedindo paz e juízo para a filha desvairada:
- Ai, minha Santa Rita de Cássia, ajude a Adelaide! Faça com que ela crie juízo, que esqueça de uma vez por todas essa história de cinema e arrume logo um bom namorado para fazer um bom casamento. Tô vendo que ela vai ficar é solteirona e pra titia, que Silene tá é cuidando da vida dela.
Adelaide, em seu quarto, também reza para sua Santa Rita, mas não aquela mesma de sua mãe:
- Ai, minha Santa Rita, minha Santa Ritinha. Minha Santa Rita Hayworth, faça com que meu príncipe encantado de Hollywood venha logo me buscar, para o meu casamento dos sonhos. Não quero ficar solteirona! Ah, e me faça ficar poderosa como a senhora em “Gilda”, por favor. Amém.
Adelaide possui excepcional talento para copiar os figurinos de suas musas inspiradoras. Vira noites debruçada sobre a máquina, cosendo, procurando o que fazer naquele lugar, o que acaba lhe dando uma boa idéia: já que possui energia e tempo de sobra, além de ser boa em copiar vestidos, por que não costurar para fora? Como diria sua mãe, “distrai a cachola de besteira, e também vai te dar um dinheirinho”.
E assim Adelaide seguiu levando sua vidinha. Foi com orgulho que viu seu trabalho ser requisitado por todas as senhoras de Alegria, tornando seu mínimo espaço de produção no “Ateliê Adelaide – costuras de classe”. Costurava dia e noite e ainda com três ajudantes, pois sozinha não dava mais conta. Mal via Neide e Cidinha, que namoraram, desmancharam, namoraram, até noivarem e se casar, deixando a cidade muito antes de Adelaide, que já se aproximava dos 30. Neide se tornou professora na capital e vizinha de Cidinha, que perseguiu seu sonho e se tornou garota-propaganda na televisão. Vendia de tudo, mas o que mais gostava era de anunciar produtos alimentícios.
A mais nova e, por incrível que pareça, duradoura paixão de Adelaide era Leandro Villar, astro do cinema paulista, protagonista de fitas badaladas como “Sem fronteiras para amar” ou “Colinas da Paixão”, um tipão. Sua mais recente produção, “Amor do interior” procurava um local ainda bucólico para as filmagens, e anunciaram justamente gravar em Alegria alguns trechos. Como Adelaide amava sua cidade!
A praça principal estava escura de tanta gente, fios e equipamentos. Adelaide tenta daqui, se estica dali, e consegue ver o que acredita ser o pescoço de Leandro Villar, o mais perto que já chegara de um astro de cinema. Esperará atentamente que acabem para correr e lhe falar qualquer coisa, se não estiver emocionada para tanto.
Mas aquele dia passava devagar. Horas e horas onde cenas se estendiam, sem Adelaide entender. Quantas vezes repetiam o mesmo trecho, arrastando a câmera, e de novo, e mais uma vez. Nunca havia imaginado que ver uma produção assim, de perto, seria tão... chato. Cansou. Precisava ir ao banheiro.
Adelaide sai correndo por entre a multidão, quando tropeça em um dos muitos fios, ou pés, não se recorda. Só sabe que tropeçou, caiu e bateu a cabeça, o que comprova a fina cicatriz que ficou depois. Acordou com o céu escuro sobre si, de pessoas amontoadas, curiosas. Entre elas, segurando sua mão, Leandro Villar. Só podia estar vendo coisas.
- Me deixem passar, é minha filhinha, Adelaide! - gritava Dona Nair.
- Eu estou bem, estou até vendo estrelas – respondeu uma atordoada Adelaide.
- Calma, minha pequena. Você sofreu um pequeno acidente, mas está bem. Eu a levarei para casa, daremos uma pausa – disse Leandro Villar, voz suave, com todo o charme que ela via na sala escura do cinema.
- Isso, mãe, ele me levará daqui, eu falei...
- Moço, vamos logo, ela tá delirando!
- Se eu estiver delirando, por favor, não me acordem!
Adelaide voltou para casa nos braços de Leandro Villar, super astro, seu astro, o grande amor de uma vida. No caminho já se imagina entrando na mansão deles, recém-casados, os três filhos lindos e bem cuidados, as festas que iriam, a vida que levaria...
Leandro Villar limpa com cuidado o machucado em sua testa, ali, tão perto dela.... Aqueles olhos! Sempre lhe denotavam algo familiar, mas assim, tão próximo, a suspeita crescia, urgia, gritava:
- Perei... Pereirinha?
- Eu.
- Você é Leandro Villar?
- Leandro Villar sou eu, sim.
- Mas por quê?
- A garota por quem eu fui apaixonado era louca por astros de cinema. Um dia, um amigo de um amigo precisava de um figurante para uma produção, eu me ofereci, fui muito bem, e aqui estou.
- Por que Leandro Villar?
- Antonio Afonso Ramos Pereira não é nome de ator famoso, não acha?
Leandro Villar, Pereirinha, pega as mãos de Adelaide.
ADELAIDE
E a garota?
PEREIRINHA
(irônico) O que tem ela?
ADELAIDE
(num muxoxo) Não é mais apaixonado por ela?
PEREIRINHA
Não.
ADELAIDE
Ah, que pena.
Adelaide vira o rosto para esconder as lágrimas. Pereirinha pega seu queixo e a faz olhar para ele.
PEREIRINHA
Hoje ela é uma linda mulher, e eu a amo.
ADELAIDE
Oh, Pereirinha!
Pereirinha e Adelaide beijam-se apaixonadamente.
PEREIRINHA
Ai, Adelaide!
CORTA PARA:
INTERIOR – IGREJA - DIA
Adelaide e Pereirinha no altar, igreja cheia, com Cidinha e Neide como Madrinhas e Dona Nair chorando copiosamente.
ADELAIDE (falando para a câmera) Eu não disse que ainda me casaria com um astro de cinema?
NEIDE E CIDINHA (suspirando)FIM
FADE OUT
DIRETOR (OFF)
Corta! A cena ficou ótima, podemos ir para casa, pessoal!
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