segunda-feira, julho 31, 2006
CIRANDA DE SÃO JOÃO
A cidade inteira era uma euforia só. Cidadinha pequena, daquelas que cresceram em torno da Praça da Igreja, todo dia o sinal da cruz ao passar pelo cemitério, ao meio-dia, em testa de criança prá passar soluço longo.

O casamento da filha de Nhô João era o assunto à boca pequena ou de qualquer tamanho e saúde. Margarida, um doce de moça e, do jardim do pai, sua flor favorita.

Antônio, o pretendente adequado: melhor nascido, educado na capital, doutor dos bois e cavalos da região, até parto de criança de emergência já teve que fazer. Verdade. Taí a filha de Dona Zenóbia que não me deixa mentir.

Nunca fora moço de tomar liberdades, sempre respeitador. Pedia para pegar na mão, namorava na sala, ia embora cedo. Fazia planos para a nova casa, os quatro filhos, a ampliação do consultório.

Margarida cuidava dos detalhes para o casamento: enxoval, vestido, Igreja. Pagara com fervor sua promessa para seu santinho, o Antônio, que finalmente lhe atendera e lhe mostrava o amor.

Mas o Santo, ocupado que só ele, errara o alvo, coitado. Margarida bem que se esforçou em se apaixonar pelo correto Antônio, mas quando seus olhos encontraram os de Pedro, estava já desarmada de seus lógicos argumentos e princípios, era toda coração. Faltaria com o pai, com o noivo, com toda a pequena cidade que a vira crescer.

Tomou o rumo da estrada com a roupa do corpo e um sorriso nos olhos, amparada por seu ainda jovem ladrão.

Nhô João organiza grupos de conhecidos, desbandeirados à procura da doidivanas que de desculpa só deixou sobre a cama o vestido, branco como seu silêncio.

Antônio caído à porta, inconsolável. Poderia ter desposado Francisca, a outra irmã e ainda bonita, sem graça mas sempre presente. Sentia falta da mão macia e quente de Margarida.

As pessoas aos poucos retornam às suas casas. O que teria feito Margarida abandonar o noivo sozinho no altar, ninguém soube, assim como também ninguém entendeu a súbita chegada de Padre Valdir, substituindo o jovem pároco Pedro.

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postado por Aleksandra Pereira às 1:36 PM | 5 comentário(s)
domingo, julho 23, 2006
O TAMANHO DO SEU SONHO

Aníbal conquistara o mundo: posição, dinheiro, respeito. Advogado, era conhecido por seu senso de justiça, dever e ética, sem ter perdido uma única questão.

Casado com Yara, pai de João Pedro e Helena, avô de Valentina. A casa dos sonhos, amigos presentes, viagens freqüentes. Mas mesmo com tudo isso, Aníbal não se sentia feliz. Não usufruía totalmente do que conquistara, o fruto de uma vida inteira de trabalho duro. Começara ainda garoto entregando correspondência, levantando cedo, atravessando a cidade de ônibus, juntando dinheiro. Estudando à noite, dormia sobre os livros. Aluno esforçado, obteve uma indicação para estágio e assim foi, escrevendo a própria história.

Aníbal cresceu nos tumultuados anos 60, militante mais por convicção que por ideal. Protestou, cantou. Se via como uma promissora estrela do rock, tocando para multidões, pulando em uma justíssima calça de couro preta tamanho 40, pura rebeldia.

Desse sonho guardou somente a calça preta, que nem de couro de verdade era (mais por falta de dinheiro que por princípios). Logo estaria trabalhando muito mais, progredindo na carreira, casando com Yara. Trocou as aulas de guitarra pelos cursos, palestras, os estudos de leis e o treinamento para pais de primeira viagem.

Mal sentira passar os 30, os 40, os 50, agora os 60. Será que encontraria tempo para uma crise de meia-idade?

Enquanto ninava a neta Valentina que insistia em não dormir, Aníbal cantarolava velhas canções - aparentemente a netinha herdara do avô a paixão por Beatles, Joni Mitchell, Led Zeppelin e Elvis Prestley.

Aníbal brincava com as músicas, feliz como se tivesse reencontrado um amigo verdadeiro e querido que há muito não via. Agasalhou a pequena sonolenta e, enquanto a esposa Yara dormia, resgatou uma escondida caixa do armário.

Lá estava ela, já sem brilho, guardando histórias esquecidas que já mofavam, a velha calça de couro. Querendo relembrar desejos antigos, Aníbal insiste em entrar na calça com ímpetos de advogado em julgamento. Pula, encolhe a barriga, deita no chão, e nada, nada o ajuda a escorregar para dentro da peça.

Com medo de acordar a mulher, desolado, Aníbal desiste da empreitada. Deitado, tenta esquecer, mas não se conformava em ter perdido tanto tempo longe do que realmente queria fazer. Lhe incomodava perceber que, literalmente, não cabia mais em seus sonhos.

Aníbal organiza pessoalmente os preparativos para sua festa de aniversário. O episódio da calça o deixara mais sentimental, saudosista, triste até. Desejava reunir amigos e colegas, funcionários, família. Mentalmente traçara um plano: seria esta sua festa de despedida. Estava decidido.

Fez a lista de convidados, escolheu o lugar, o serviço de buffet, a banda, enviou os convites, e esperou.

||||||

A banda era alegre, de rock, o que facilitava a volta ao passado. No salão, rostos conhecidos, próximos, distantes, velhos e novos. O sapato comprado para a ocasião machuca seu calcanhar, no que Aníbal disfarça com um sorriso e passos mais curtos. Cumprimentos, abraços, saudades. Talvez não entendessem sua decisão.

Parabéns.
Aníbal agradece a presença de todos e brinca com a escolha acertada de Yara em não por 60 velinhas no bolo. Imagine só, poderiam causar um incêndio!

Enquanto comem, a banda volta a tocar as favoritas de Aníbal. Yara recorda o dia em que conhecera o marido no escritório do advogado do pai. Era a primeira semana do estagiário, que ela não sabia se estava nervoso por inexperiência ou porque ela o olhava insistentemente.

Lembrou o primeiro beijo, os filhos crescendo, as festas, as noites esperando Aníbal, a mão que lhe afaga os cabelos ao acordar. A vida havia sido boa com eles. Só não entendia a causa da presente melancolia do marido.

Falando nele, onde estava? Procura por Aníbal, e não o vê. Ninguém sabe dele. Não o imagina fazendo uma besteira, mas tinha medo do que poderia acontecer. No salão, todos riam aproveitando a boa festa, alheios aos transtornos da jovem senhora.

Ao mesmo tempo em que Yara desaba na cadeira para chorar, perdida, abandonada e impotente, as luzes se apagam. No pequeno palco, marcando o rito ensaiado com a banda, Aníbal, acompanhando o quarteto como um quinto Beatle:

"There's nothing you can do
that can't be done
There's nothing you can sing
that can't be sung
There's nothing you can say
but you can learn how to play the game,
it's easy...

all you need is love..." [*]

Os aplausos, risos e assobios são estrondosos, abafando o choro soluçado de Yara. Aníbal se diverte, feliz ao retomar seu antigo desejo. Estava decidido em investir em sua carreira de músico, mesmo que fosse seguir cantando aqui e ali. A calça de couro preta que está usado é número 48, é verdade, mas não faz mal. Aníbal só precisou fazer uns ajustes no tamanho dos seus sonhos.


[*]

[Publicity Still]
Colin Firth
como Henry Dashwood no filme
"What a girl wants",
dirigido por Dennie Gordon,
Warner Bros, 2003

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postado por Aleksandra Pereira às 11:25 AM | 6 comentário(s)
sábado, julho 22, 2006
Meu coração alcança o mar,
mas meus olhos não vêem além
das janelas de meu quarto.
 
postado por Aleksandra Pereira às 9:10 PM | 1 comentário(s)
sexta-feira, julho 14, 2006
PROMESSAS DE CARNAVAL
Para quem descesse as arquibancadas e os visse, seriam só um pirata e uma bailarina empolgados com o calor da festa, mas para Evandro, com a vista apertada pelo tapa-olho e Cristina, com sainha emprestada, era mesmo amor.

Mal se olharam, trocaram poucas palavras – sinais suficientes de reconhecimento. Ele amou a pinta que Cristina guarda no canto da boca; já ela, ela o amou por ele ser eles mesmo, e isso bastava.

Fim de festa, as famílias se despedem, os apaixonados protestam a separação. Mas nada os impediria de ficarem juntos, nem mesmo os dois mil quilômetros que os distanciariam. Juraram amor eterno; um último toque, e a promessa de que não se esqueceriam.

A viagem de ônibus na volta para casa entristecia Evandro, perto em pensamento, mas longe fisicamente da amada. Chateado, vestia ainda a roupa de pirata, agora sem tapa-olho, espada, sem brilho, um pirata sem pilhagens cintilantes, nem fortuna acumulada.


Mas foi sua apatia e abandono que atraíram Leila, cigana de aparelho nos dentes e bom coração no peito e que, ao cumprimentar Evandro, refletiu-se nas lantejoulas do garoto.

Hoje a velha fantasia não serve mais, nem mesmo no filho mais novo de Evandro e Leila, já avós. As festas de Carnaval são agora acompanhadas pela TV, tranqüilas e em família. Mas em suas lembranças, Evandro busca, sempre, a imagem daquela pequena bailarina.

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postado por Aleksandra Pereira às 3:58 PM | 3 comentário(s)

LÁGRIMAS LAVADAS© 2006, por Aleksandra Pereira. All rights reserved.