Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe.
(Oscar Wilde)
Betina sonhou não lembrar se tinha dezesseis ou trinta anos. Acordou com cinqüenta. Na verdade, quarenta e nove anos, onze meses e vinte e seis dias. O que fez em todos esses anos, o que conquistou? Foi feliz? Na correria louca de seu louco mundo, não tinha parado para refletir sobre os rumos de sua vida.
E o que era todo aquele questionamento? Tristeza ou falta de estrógeno?
Só se lembra que tudo aconteceu tão rápido...
Após um ano e meio de casamento, seu marido fora embora, deixando-a sozinha com a pequena Rafaela. Betina viveu o estigma de ser chamada “separada”, “mãe solteira” em uma época de profundas mudanças no país e dentro dela. Para sobreviverem, trabalhava fora em dois empregos, deixando a filha pequena aos cuidados de Maura, a babá e melhor amiga de todas as horas.
Bem, de quase todas.
- Alô? Maura?- Tina? ‘Cê sabe que horas são?- Meu relógio parou.- Então troca de pilha, Tina, e me deixa dormir.- Não é desse relógio que eu tô falando, criatura, é o da vida.- Tina?!? Você morreu? Tá ligando do Além?- É sério, Maura.- ‘Cê tá bem, Tina?- Além da pele seca, o excesso de peso, o coração que galopa, acordar empapada de suor, e uma montanha-russa emocional? Tô ó-ti-ma!- Aham...- Maura, acorda!!!- Hã? Eu não tô dormindo. Escuta Tina, ‘cê tá ligando do Além a cobrar?- Eu não sou fantasma, Maura.- Não? Ah, então liga amanhã! Tchau.- Maura? Alô? (...) Palhaça.Betina vivia para filha, hoje seu mundo é a neta. Esqueceu o que era sair, curtir a vida, namorar, sempre ocupada com o trabalho, contas, médicos. O tempo simplesmente foi passando e lhe deixando para trás. Filha, esposa, mãe, avó. Betina via sua vida e todos os seus diferentes papéis em sua frente. Mas o que seria dela agora? O que fazer?
Sua atual vida a entristecia. Mesmo tendo saúde, um confortável apartamento, ou uma boa renda com sua loja de bolsas. O que Betina não compreendia era o que fazer com aquela estranha que a olhava no espelho todos os dias.
Deprimida às portas da quinta década, Betina custava a sair de casa ou do telefone, em longas conversas com a amiga Maura. Fabiana a encontrava sempre perdida sob as cobertas:
- Vó, sai já dessa cama, vem tomar um banho gostoso e comer alguma coisa quentinha.- Não quero.- Deixa de manha, Dona Betina. Parece criança. Vamos, tira logo a bunda desse colchão.- Não fala assim comigo, sou sua avó e sua mãe.- E se não levantar, baterei na bunda das duas.- Não vou sair mais da cama, Fabi. Manda trazer minhas coisas do escritório, que agora trabalho daqui.- Que é isso? Preguiça?- Não. Crise... de meia-idade.- Crise de meia-idade, vó? Qualé, isso é besteira. Além do mais, ‘cê não vê jornal, não? Se a média de vida das mulheres tá em uns 73 anos, sua meia-idade, matematicamente, foi lá entre os 36, 37 anos.- Isso. Pisa.- Seguinte, vó. Depois da escola, vou pro shopping e depois janto na casa da Carol.- Não volta tarde.- E você, nada de comida mexicana de novo. Chega de nachos, burritos e guacamoles. Sai e come algo leve, só pra variar.- Tá bom.- Mas é pra sair. Chama a madrinha pra ir junto.- Tá bom, mãe. Tchau. Bom passeio, divirta-se, juízo e...- Eu já sei, vó: juízo, cuidado, camisinha, blá, blá, blá...- Isso mesmo, vai repetindo como mantra pelo caminho. Não vou aguentar ser bisavó agora....
- La Violetera, Buenas noches!- Alô? Oi, é a Betina, aqui da Espírito Santo. Eu quero o combo com dois burritos, e nachos com guacamole, salsa e cheddar. Isso. Rápido....
Sentada sozinha na cozinha, após separar pratos e talheres, Betina espera. Contar o tempo havia virado sua principal ocupação.
...
A comida do restaurante nem era mais tão boa assim, desde a troca de cozinheira. Juanita abandonara o restaurante e o marido para viver com um confeiteiro francês no interior de Santa Catarina. Antonio Morais, o “Morales”, assumiu o estabelecimento e fazia ele mesmo algumas entregas, principalmente se conhecia os fregueses.
- Como está o nacho, Betina?- Delícia, Morais. Muito gostoso.- Experimenta com o vinho.- Eu não pedi vinho.- Não reclama e experimenta.- Humm. Bom.- Fica com a garrafa. (...) Melhor?- Sem fome.- Bom começo.- Já não me bastava a lei da gravidade, Morais, meu mundo também caiu... Olha só prá mim. Sábado à noite e eu na cozinha, devorando comida mexicana com o entregador.- Dono.- Desculpa, não quis ofender. É que eu remôo demais as coisas, sabe? Penso, analiso, defino. E não tenho feito nada. (...) Tanto tempo que não faço o cabelo, ou compro roupas novas... Esse vestido eu usei no batizado da minha neta. (...) Tô só o pó, como ela diria. O pó. “Não encuca, vó”.- E ela tá é certa. Não deve ficar esquentando com besteira. Tem muita coisa pra fazer ainda na vida, Betina.- Você acha?- Acho. É nova ainda, bonitona.- É, eu ainda tô respirando, né?- Como mulher gosta de reclamar, não? Ô, diacho! (...) A conversa tá boa, mas eu vô andando.- Quanto eu devo?- Deixa disso, já pagou com o papo.- Morais, assim você vai falir.- Mas quem disse que eu não me divirto?- As agruras de uma mulher de meia-idade te fazem rir? Fora daqui agora! Tchau, e obrigada pela paciência.- Nada. Outra coisa: não é ruim se ainda cabe no vestido do batizado. Sinal que ainda tá podendo...
- Podendo caber no vestido, pelo menos!
- Você é uma mulher muito bonita, Betina, tem que lembrar disso. Precisando de companhia, sabe onde achar.- Tá. Quando quiser taco de novo, te aviso.- Pode ser, também....
- Esse Morais tava me cantando ou sendo gentil? Acho que perdi o jeito....
Betina bebeu todo o resto do vinho direto da garrafa, e capotou no sofá. A bebida e o estômago pesado somaram-se em um pesadelo daqueles:
Ela tinha dezesseis anos, e ia com sua saia de pregas favorita encontrar-se com Maurício, o namorado secreto aos pais e que seria o grande amor de sua vida por mais 1 ano, 8 meses e 11 dias, até o momento em que ele lhe apresentou Darcy, estudante de Direito, 23 anos e capitão da equipe de Remo. Mas naquele dia Betina ainda nem imaginava Darcy, mas seria aquele o momento da concepção de Rafaela.
Betina passava em frente a uma construção com peões, serventes e pedreiros, imagem clássica de homens suados sob o escaldante sol do meio-dia.
Logo lhe alcança a chuva de assobios e frases redondas de ambigüidades e provocações, que coram as bochechas mas afagam o ego. Até ouvir a estranha frase
“Poxa, se fosse mais nova eu até pegava!”.
Como assim, mais nova? Betina olhava para suas mãos, braços e pernas, tocava o rosto, os cabelos, e sentia fresco o viço da juventude.
“Mais nova? Credo, isso dá é cadeia, viu?”Mas o reflexo dos vidros do prédio vizinho lhe traía: grisalha, abatida, a pele marcada e o corpo curvado pelo tempo. Levava a mão à boca e ela tremia pela exaustão com o breve esforço.
Vê-se definhando, encarquilhando, engolida pela vida que escoa. Ela se toca, e se observa de cima a baixo.
“
Mas como? Minhas mãos, o meu corpo, eu ainda sou jovem, jovem!!!”, ela questiona, suplica, a visão turva pelas lágrimas. Nada lhe resta a fazer senão chorar.
O choro lhe lava a alma e o rosto se transforma em exultação ao ver-se refletida como é, dezesseis anos, radiante em sua saia pregueada.
Fora somente um delírio, excesso de calor e imaginação. Maurício a espera, precisa ir.
Mas não consegue sair do lugar, tem a estranha sensação de encolher. O ar lhe falta, as mãos envelhecidas, não mais obedecem.
Betina quer gritar, pedir ajuda, mas não tem forças. Está morrendo.
- Vó? VÓ?- Ah? O quê? O que foi?- Vó? Acorda, vó. ‘Cê tava tendo um baita pesadelo!- Quantos anos eu tenho?- Os mesmo de antes. Até o próximo aniversário.- Graças a Deus!- Eu, hein!? (...) Sonhou com o quê?- Com meu passado, com meu futuro...- E o presente, nada? Ai, vó, ‘cê pensa demais. Será que quando eu ficar velha, vou passar o resto da vida assim, só pensando?- Se queria me ajudar, continua, você tá quase conseguindo...- Vó, já foi. Passou. Você não pode encucar tanto com coisas que aconteceram lá no século 17, esquece isso, pô.- Século 17?- Maneira de falar, vó.- Não podia ser o finzinho do 19?- Não vai levantar, né?- Só mais dois minutinhos...- Deixa pra lá. Tchau, Dona Betina.Aquela não era maneira de viver. Ainda era jovem, bonita, poderia voltar a estudar se quisesse, agora que as coisas estavam tranqüilas. Sairia para comprar roupas novas, acessórios. Faria o cabelo. Pegaria Maura e viajariam juntas pelo interior do país, rindo como loucas, conhecendo pessoas interessantes, homens interessantes. Estava viva. Viva, como estavam Fabiana e a amiguinha na sala de estar, preparando-se para uma festa. Precisava se lembrar de como fazer isso: viver.
- Dona Betina, a senhora tá uma gatona!- Gatona?- É, bonita, poderosa.- Vai sair, vó?- Não. Passei a tarde na loja, cansei. Vou ficar por aqui mesmo. Divirtam-se vocês.- E você vai fazer o quê?- Não sei. (...) Acho que vou pedir comida mexicana.
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Ufa! Leu até o fim? Beleza. Se gostou, aguarde.
Betina, Maura, Fabiana e companhia ainda aprontarão muito por aqui.
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