segunda-feira, janeiro 01, 2007
ANDAR COM FÉ EU VOU
2ª Publicação

Otacílio dizia-se “sem sorte”. Sim, sem sorte, pois todos sabem que dizer-se azarado, dá azar.

Não passava debaixo de escada, corria de gato preto, não mantinha espelhos com medo de quebrá-los e ganhar, assim, sete anos de... você sabe.

Evitava o número 13, levantar com pé esquerdo e praga de mãe, mesmo quando a mãe era a dos outros.

Usava, espalhados pelo corpo, figa, patuá, medalhinha do Anjo da Guarda, retratinho de Nossa Senhora, fitinha do Senhor do Bonfim, trevo de quatro folhas, ramo de arruda e pé de coelho. Esse último, desistiu de carregar. Se desse mesmo certo, teria salvado o pobre do coelho que nascera com quatro.

Mas nada adiantava, a maré não virava a seu favor. Perdera o emprego e, junto com o fim do dinheiro, a esposa e os dois filhos. Ameaçava ser preso por não ter como pagar a pensão alimentícia e nem a pensão da Dona Cota, onde vivia e mal pagava com os bicos que fazia.

Os amigos e parentes se afastaram. Quem queria ao lado um imã ambulante de má sorte?

Quando Otacílio conseguia agendar uma entrevista de emprego, acordava atrasado, tinha o salto do sapato quebrado e o ônibus rebocado. Conseguia convencer uma garota a um encontro? A calça rasgava e a única camisa em bom estado ganhava um banho de espaguete.

Ele bem que se esforçava, coitado. Ano Novo era o primeiro a pular as 7 ondas, pedindo forças aos santos e orixás, sem distinção - toda ajuda é bem-vinda para quem está na mão. Corria para casa, subindo a escada comendo uva e romã, tomando cuidado para não derrubar o vinho tinto com 3 grãos de arroz na camisa branca nova, comprada em prestações.

E tudo continuava na mesma, até a virada do último ano. Chateado, resolveu jogar fora todos os seus amuletos. Sentiu-se bem, mais leve uns 2 quilos pelo menos. De camiseta vermelha desbotada, bermudão e chinelo de dedo, acompanhou os fogos pela TV, para espanto dos outros moradores.

Otacílio seguiu assim a vida. Meses depois o encontrei num shopping center, fazendo compras ao lado de uma bela morena. Admirado com a mudança, quis saber das boas novas, que não eram só boas, eram ótimas: Otacílio recebera de herança uma gorda quantia, deixada por uma tia avó que vivia distante, chegada à sua falecida mãe. No aeroporto, indo para a pequena cidade de sua afastada parenta, reencontrou Irene, namorada dos tempos de colégio, recém-divorciada e bem de vida.

Um amor antigo, uma herança ligada ao passado. O atual racional Otacílio não acredita mais em amuletos e superstições, preferindo levar a vida de uma forma mais tranqüila. Mas toda virada de ano passa de bermudão, chinelo de dedo e a velha e desbotada camiseta vermelha.

Só por garantia.

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postado por Aleksandra Pereira às 10:49 AM |


16 Comentários:


At quinta-feira, janeiro 04, 2007 11:51:00 AM, Blogger Sandman of the Endless 

Divertidíssimo, Alek! Gostei! Viu como as coisas tomaram outro rumo quando o Tacílio desencucou do carma que lhe perseguia e apenas começou viver??? Beijo grande...

At quinta-feira, janeiro 04, 2007 2:04:00 PM, Blogger Vivien Morgato : 

eu sou assim...rs..que vergonha!!
Adorei o texto.bj.

At quinta-feira, janeiro 04, 2007 3:14:00 PM, Anonymous Anônimo 

Muito pertinente aquela lista dos que submetem os animais à testes... embora eu me pergunte... testaíamos em quem então?

At quinta-feira, janeiro 04, 2007 6:42:00 PM, Blogger Aleksandra Pereira 

Já parei para me perguntar justamente isso, Ivan. Não acho justo nem devido testar os produtos tanto em animais, quanto em humanos. Passei então a mudar o foco da pergunta: será que preciso mesmo desse produto? E se todos parassem para pensar nisso?

Esse item pode me facilitar uns segundos no dia, mas ser elaborado de maneira incerta. Ainda assim é válido?

Achei que fosse passar fome sem ingerir carne, e vi que não. Acho que posso mudar meus hábitos e escolhas sobre outras coisas também.

Beijo grande.

At quinta-feira, janeiro 04, 2007 6:43:00 PM, Blogger Aleksandra Pereira 

Ah, e é muito bom ter você de volta, Ivan, parabéns pelo pimpolho!

At quinta-feira, janeiro 04, 2007 6:45:00 PM, Blogger Aleksandra Pereira 

Vivien, querida, posso dizer que foi muito "otaciliana" nessa passagem de ano.

Espero que a minha paixão, antiga ou não, logo surja (e se sobrar uma herança também, é bem-vinda!)


Edval, meu amigo, bom te ter de volta também! (e desencanar às vezes é tudo de bom, não é?)


Beijos

At sexta-feira, janeiro 05, 2007 2:19:00 PM, Anonymous Anônimo 

É, menina, a gente tem mesmo de jogar fora 'amuletos" como a inveja, a raiva, o egoísmo, e tantas coisas ruins que só pesam em nosso caminho.
Um ano muito bom pra você!
beijo, menina

At sexta-feira, janeiro 05, 2007 4:46:00 PM, Blogger Andréa 

Ah esses amuletos, sorte, supersticao... Eu gosto, mas tem limite, ne? E parece que quanto mais levamos a serio, pior, entao eh bom que respeitemos e soh. Beijo.

At sábado, janeiro 06, 2007 8:36:00 PM, Blogger Sandman of the Endless 

É isso aí, princesa! É tudo de bom mesmo. Um beijo muito, muito grande pra voc~e, Alek.

At segunda-feira, janeiro 08, 2007 9:03:00 PM, Blogger Aleksandra Pereira 

É mesmo, Denise,
o meu lema é procurar seguir mais leve, mais despreocupada. Encucando ou não, as coisas acontecem. Só não podemos é nos mortificar, sofrer, estagnar.

Beijo

At segunda-feira, janeiro 08, 2007 9:05:00 PM, Blogger Aleksandra Pereira 

É que se apegar faz parte do ser humano, Déa. A gente quer acreditar, e meio como São Tomé queremos ver para acreditar. Um amuleto, algo físico, é mais próximo da gente.

Mas algumas pessoas exageram.

Beijo!

At quarta-feira, janeiro 10, 2007 1:02:00 AM, Blogger TARCIO OLIVEIRA 

Gosto dessa ironia presente no texto; de como você catuca com jeito e do jeito certo nossas dúvidas quanto a esse algo chamado destino.
-
Beijo, escritora.

At sexta-feira, janeiro 12, 2007 1:36:00 AM, Blogger Luiz Felipe Botelho 

Valeu a republicada.
Sou fanzão do Otacílio e tenho cá minhas superstições. Poucas, mas tenho. Passar em baixo de escadas, por exemplo. :)

Bjão

At sexta-feira, janeiro 12, 2007 12:37:00 PM, Blogger Aleksandra Pereira 

Também não passo sob escadas, não, mas acho que é mais medo de tê-las caíndo em minha cabeça, mas uma coisa que não deixo, por exemplo, é chinelo virado. Me dá agonia.

Beijo

At quinta-feira, janeiro 18, 2007 2:10:00 AM, Anonymous Anônimo 

Muito legal, Alê!! Me fez lembrar de minha Tia Cirtha que sempre fazia um monte destas simpatias de virada de ano comigo e minha irmã quando éramos crianças... as romãs...

Agora, será que o Otacílio não aluga este modelito, hein? Hein? Hein?

Beijo,



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