Betina sonhou não lembrar se tinha dezesseis ou trinta anos. Acordou com cinqüenta. Na verdade, quarenta e nove anos, onze meses e vinte e seis dias. O que fez em todos esses anos, o que conquistou? Foi feliz? Na correria louca de seu louco mundo, não tinha parado para refletir sobre os rumos de sua vida.
E o que era todo aquele questionamento? Tristeza ou falta de estrógeno?
Só se lembra que tudo aconteceu tão rápido...
Após um ano e meio de casamento, seu marido fora embora, deixando-a sozinha com a pequena Rafaela. Betina viveu o estigma de ser chamada “separada”, “mãe solteira” em uma época de profundas mudanças no país e dentro dela. Para sobreviverem, trabalhava fora em dois empregos, deixando a filha pequena aos cuidados de Maura, a babá e melhor amiga de todas as horas.
Bem, de quase todas.
- Alô? Maura?
- Tina? ‘Cê sabe que horas são?
- Meu relógio parou.
- Então troca de pilha, Tina, e me deixa dormir.
- Não é desse relógio que eu tô falando, criatura, é o da vida.
- Tina?!? Você morreu? Tá ligando do Além?
- É sério, Maura.
- ‘Cê tá bem, Tina?
- Além da pele seca, o excesso de peso, o coração que galopa, acordar empapada de suor, e uma montanha-russa emocional? Tô ó-ti-ma!
- Aham...
- Maura, acorda!!!
- Hã? Eu não tô dormindo. Escuta Tina, ‘cê tá ligando do Além a cobrar?
- Eu não sou fantasma, Maura.
- Não? Ah, então liga amanhã! Tchau.
- Maura? Alô? (...) Palhaça.
Betina vivia para filha, hoje seu mundo é a neta. Esqueceu o que era sair, curtir a vida, namorar, sempre ocupada com o trabalho, contas, médicos. O tempo simplesmente foi passando e lhe deixando para trás. Filha, esposa, mãe, avó. Betina via sua vida e todos os seus diferentes papéis em sua frente. Mas o que seria dela agora? O que fazer?
Sua atual vida a entristecia. Mesmo tendo saúde, um confortável apartamento, ou uma boa renda com sua loja de bolsas. O que Betina não compreendia era o que fazer com aquela estranha que a olhava no espelho todos os dias.
Deprimida às portas da quinta década, Betina custava a sair de casa ou do telefone, em longas conversas com a amiga Maura. Fabiana a encontrava sempre perdida sob as cobertas:
- Vó, sai já dessa cama, vem tomar um banho gostoso e comer alguma coisa quentinha.
- Não quero.
- Deixa de manha, Dona Betina. Parece criança. Vamos, tira logo a bunda desse colchão.
- Não fala assim comigo, sou sua avó e sua mãe.
- E se não levantar, baterei na bunda das duas.
- Não vou sair mais da cama, Fabi. Manda trazer minhas coisas do escritório, que agora trabalho daqui.
- Que é isso? Preguiça?
- Não. Crise... de meia-idade.
- Crise de meia-idade, vó? Qualé, isso é besteira. Além do mais, ‘cê não vê jornal, não? Se a média de vida das mulheres tá em uns 73 anos, sua meia-idade, matematicamente, foi lá entre os 36, 37 anos.
- Isso. Pisa.
- Seguinte, vó. Depois da escola, vou pro shopping e depois janto na casa da Carol.
- Não volta tarde.
- E você, nada de comida mexicana de novo. Chega de nachos, burritos e guacamoles. Sai e come algo leve, só pra variar.
- Tá bom.
- Mas é pra sair. Chama a madrinha pra ir junto.
- Tá bom, mãe. Tchau. Bom passeio, divirta-se, juízo e...
- Eu já sei, vó: juízo, cuidado, camisinha, blá, blá, blá...
- Isso mesmo, vai repetindo como mantra pelo caminho. Não vou aguentar ser bisavó agora.
...
- La Violetera, Buenas noches!
- Alô? Oi, é a Betina, aqui da Espírito Santo. Eu quero o combo com dois burritos, e nachos com guacamole, salsa e cheddar. Isso. Rápido.
...
Sentada sozinha na cozinha, após separar pratos e talheres, Betina espera. Contar o tempo havia virado sua principal ocupação.
...
A comida do restaurante nem era mais tão boa assim, desde a troca de cozinheira. Juanita abandonara o restaurante e o marido para viver com um confeiteiro francês no interior de Santa Catarina. Antonio Morais, o “Morales”, assumiu o estabelecimento e fazia ele mesmo algumas entregas, principalmente se conhecia os fregueses.
- Como está o nacho, Betina?
- Delícia, Morais. Muito gostoso.
- Experimenta com o vinho.
- Eu não pedi vinho.
- Não reclama e experimenta.
- Humm. Bom.
- Fica com a garrafa. (...) Melhor?
- Sem fome.
- Bom começo.
- Já não me bastava a lei da gravidade, Morais, meu mundo também caiu... Olha só prá mim. Sábado à noite e eu na cozinha, devorando comida mexicana com o entregador.
- Dono.
- Desculpa, não quis ofender. É que eu remôo demais as coisas, sabe? Penso, analiso, defino. E não tenho feito nada. (...) Tanto tempo que não faço o cabelo, ou compro roupas novas... Esse vestido eu usei no batizado da minha neta. (...) Tô só o pó, como ela diria. O pó. “Não encuca, vó”.
- E ela tá é certa. Não deve ficar esquentando com besteira. Tem muita coisa pra fazer ainda na vida, Betina.
- Você acha?
- Acho. É nova ainda, bonitona.
- É, eu ainda tô respirando, né?
- Como mulher gosta de reclamar, não? Ô, diacho! (...) A conversa tá boa, mas eu vô andando.
- Quanto eu devo?
- Deixa disso, já pagou com o papo.
- Morais, assim você vai falir.
- Mas quem disse que eu não me divirto?
- As agruras de uma mulher de meia-idade te fazem rir? Fora daqui agora! Tchau, e obrigada pela paciência.
- Nada. Outra coisa: não é ruim se ainda cabe no vestido do batizado. Sinal que ainda tá podendo...
- Podendo caber no vestido, pelo menos!
- Você é uma mulher muito bonita, Betina, tem que lembrar disso. Precisando de companhia, sabe onde achar.
- Tá. Quando quiser taco de novo, te aviso.
- Pode ser, também.
...
- Esse Morais tava me cantando ou sendo gentil? Acho que perdi o jeito.
...
Betina bebeu todo o resto do vinho direto da garrafa, e capotou no sofá. A bebida e o estômago pesado somaram-se em um pesadelo daqueles:
Ela tinha dezesseis anos, e ia com sua saia de pregas favorita encontrar-se com Maurício, o namorado secreto aos pais e que seria o grande amor de sua vida por mais 1 ano, 8 meses e 11 dias, até o momento em que ele lhe apresentou Darcy, estudante de Direito, 23 anos e capitão da equipe de Remo. Mas naquele dia Betina ainda nem imaginava Darcy, mas seria aquele o momento da concepção de Rafaela.
Betina passava em frente a uma construção com peões, serventes e pedreiros, imagem clássica de homens suados sob o escaldante sol do meio-dia.
Logo lhe alcança a chuva de assobios e frases redondas de ambigüidades e provocações, que coram as bochechas mas afagam o ego. Até ouvir a estranha frase “Poxa, se fosse mais nova eu até pegava!”.
Como assim, mais nova? Betina olhava para suas mãos, braços e pernas, tocava o rosto, os cabelos, e sentia fresco o viço da juventude.
“Mais nova? Credo, isso dá é cadeia, viu?”
Mas o reflexo dos vidros do prédio vizinho lhe traía: grisalha, abatida, a pele marcada e o corpo curvado pelo tempo. Levava a mão à boca e ela tremia pela exaustão com o breve esforço.
Vê-se definhando, encarquilhando, engolida pela vida que escoa. Ela se toca, e se observa de cima a baixo.
“Mas como? Minhas mãos, o meu corpo, eu ainda sou jovem, jovem!!!”, ela questiona, suplica, a visão turva pelas lágrimas. Nada lhe resta a fazer senão chorar.
O choro lhe lava a alma e o rosto se transforma em exultação ao ver-se refletida como é, dezesseis anos, radiante em sua saia pregueada.
Fora somente um delírio, excesso de calor e imaginação. Maurício a espera, precisa ir.
Mas não consegue sair do lugar, tem a estranha sensação de encolher. O ar lhe falta, as mãos envelhecidas, não mais obedecem.
Betina quer gritar, pedir ajuda, mas não tem forças. Está morrendo.
- Vó? VÓ?
- Ah? O quê? O que foi?
- Vó? Acorda, vó. ‘Cê tava tendo um baita pesadelo!
- Quantos anos eu tenho?
- Os mesmo de antes. Até o próximo aniversário.
- Graças a Deus!
- Eu, hein!? (...) Sonhou com o quê?
- Com meu passado, com meu futuro...
- E o presente, nada? Ai, vó, ‘cê pensa demais. Será que quando eu ficar velha, vou passar o resto da vida assim, só pensando?
- Se queria me ajudar, continua, você tá quase conseguindo...
- Vó, já foi. Passou. Você não pode encucar tanto com coisas que aconteceram lá no século 17, esquece isso, pô.
- Século 17?
- Maneira de falar, vó.
- Não podia ser o finzinho do 19?
- Não vai levantar, né?
- Só mais dois minutinhos...
- Deixa pra lá. Tchau, Dona Betina.
Aquela não era maneira de viver. Ainda era jovem, bonita, poderia voltar a estudar se quisesse, agora que as coisas estavam tranqüilas. Sairia para comprar roupas novas, acessórios. Faria o cabelo. Pegaria Maura e viajariam juntas pelo interior do país, rindo como loucas, conhecendo pessoas interessantes, homens interessantes. Estava viva. Viva, como estavam Fabiana e a amiguinha na sala de estar, preparando-se para uma festa. Precisava se lembrar de como fazer isso: viver.
- Dona Betina, a senhora tá uma gatona!
- Gatona?
- É, bonita, poderosa.
- Vai sair, vó?
- Não. Passei a tarde na loja, cansei. Vou ficar por aqui mesmo. Divirtam-se vocês.
- E você vai fazer o quê?
- Não sei. (...) Acho que vou pedir comida mexicana.
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Betina, Maura, Fabiana e companhia ainda aprontarão muito por aqui.
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