terça-feira, março 06, 2007
“QUEM TEM MEDO DO HOMEM DO SACO?”
Ele caminhava devagar, tranqüilo, alheio aos xingamentos e gracinhas que sua passagem provocava. Todos os dias o mesmo percurso, o parquinho do fim da rua, onde abraçava ou mesmo subia em uma das árvores, e lá ficava horas falando sozinho. Arrastava de volta o corpo magro e frágil, quase transparente, levando sempre junto ao corpo um velho e puído saco, que nunca largava por nada.

Nós éramos crianças saudáveis, bagunceiras. Uma ocasião, curiosos, armamos uma travessura para lhe arrancar o volume, mas em vão: parecia guardar ali algo de valor maior que a própria vida. Ele me dava medo e me fascinava na mesma medida.

Por anos tentamos desvendar seu mistério. Chamado de “O Homem do Saco”, acabou mais conhecido e requisitado que o Bicho Papão, pelo menos aqui na cidade: “Menino, come logo essa comida, senão o Homem do Saco vem aqui pra te pegar!”, “Soube que o Homem do Saco adora comer criancinhas que não fazem a lição de casa. Daquelas que não tomam remédio, então, ele até lambe os beiços”. Era engraçado vermos nossos irmãos mais novos se escondendo dele, imaginando quantas crianças já escorregaram para dentro daquele saco.

Cresci mais um pouco, mudei, casei, tive um filho. Ralhando com ele durante o almoço me lembrei, depois de tanto tempo, de usar a velha “tática do medo”:

- Come, André, senão papai vai chamar o Homem do Saco!
- Então chama!, ele respondeu, desafiador e despenteado, do alto dos seus quatro anos.

(Criança acostumada com super-heróis japoneses e videogames não cai mesmo em qualquer coisa).

Passei o resto do dia pensando naquele homem. Onde estaria, se ainda andava pelas ruas. Quem era. Estranho como ainda é uma pessoa tão marcante em minha mente, e eu sequer soube seu nome ou ouvi sua voz.

Voltei ao meu antigo bairro, colégio. Ao meu passado. Revi velhos amigos, desafetos, amores. Cada um me fornecendo uma peça diferente para me levar àquele mito de infância.

E foi no Cemitério da Luz Divina que o conheci, um homem com nome e sobrenome: Leôncio José Gonçalves. Foi como se pudesse vê-lo de novo, do jeito que me lembrava dele: com seu velho e puído saco, que descobri cheio com suas lembranças e fotografias, medalhas e bilhetes, com o que de mais feliz e precioso quis guardar de sua vida, recordações divididas somente com as árvores do meu parquinho, guardiãs de seus segredos.

Cheguei em casa arrasado. Parecia que havia perdido não só a chance de ter conhecido personalidade tão rica, mas também a chave para o equilíbrio de todo o universo.

Abracei meu filho, desliguei a TV, e a partir daquele dia, todos os contos de ninar incluíam a presença de um senhor sereno e bondoso, que carregava em um saco histórias de toda uma vida.

* obra de Quint Buchholz

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postado por Aleksandra Pereira às 8:56 AM |


6 Comentários:


At terça-feira, março 06, 2007 2:22:00 PM, Anonymous Anônimo 

Lelê,
adorei.
E olha que a figura do Homem do Saco sempre foi sinistra pra mim, você conseguiu mostrar sua visão do ser humano atrás da lenda.

Bravo, minha linda!


besos

At terça-feira, março 06, 2007 6:36:00 PM, Blogger Andréa 

Aww, que fofo. Eu MORRIA de medo do homem do saco. Tinha pesadelos, ouvia vozes...

At terça-feira, março 06, 2007 11:05:00 PM, Blogger Arnaldo Heredia Gomes 

Menina! Eu nunca mais tinha pensado no homem do saco. Era um medo tão meu que achei que ninguém mais conhecesse essa personagem!

At quarta-feira, março 07, 2007 1:54:00 PM, Blogger Aleksandra Pereira 

Esse conto saiu depois de reassistir ao "Buena Vista Social Club" em DVD. Um dos músicos gravou em uma praça, e ele lá, todo simples, segurando uma sacolinha azul cheia de histórias sobre sua carreira, os amigos, toda uma vida dentro daquele plástico...

Fiquei pensando nisso e na história da gente julgar uma pessoa só em olhá-la, sem lhe dar a chance de contar, explicar, dividir.

Quando a gente pára para ouvir, pode se surpreender com as mais bonitas histórias.

beijos proceis.



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