Nós éramos crianças saudáveis, bagunceiras. Uma ocasião, curiosos, armamos uma travessura para lhe arrancar o volume, mas em vão: parecia guardar ali algo de valor maior que a própria vida. Ele me dava medo e me fascinava na mesma medida.
Por anos tentamos desvendar seu mistério. Chamado de “O Homem do Saco”, acabou mais conhecido e requisitado que o Bicho Papão, pelo menos aqui na cidade: “Menino, come logo essa comida, senão o Homem do Saco vem aqui pra te pegar!”, “Soube que o Homem do Saco adora comer criancinhas que não fazem a lição de casa. Daquelas que não tomam remédio, então, ele até lambe os beiços”. Era engraçado vermos nossos irmãos mais novos se escondendo dele, imaginando quantas crianças já escorregaram para dentro daquele saco.
Cresci mais um pouco, mudei, casei, tive um filho. Ralhando com ele durante o almoço me lembrei, depois de tanto tempo, de usar a velha “tática do medo”:
- Come, André, senão papai vai chamar o Homem do Saco!
- Então chama!, ele respondeu, desafiador e despenteado, do alto dos seus quatro anos.
(Criança acostumada com super-heróis japoneses e videogames não cai mesmo em qualquer coisa).
Passei o resto do dia pensando naquele homem. Onde estaria, se ainda andava pelas ruas. Quem era. Estranho como ainda é uma pessoa tão marcante em minha mente, e eu sequer soube seu nome ou ouvi sua voz.
Voltei ao meu antigo bairro, colégio. Ao meu passado. Revi velhos amigos, desafetos, amores. Cada um me fornecendo uma peça diferente para me levar àquele mito de infância.
E foi no Cemitério da Luz Divina que o conheci, um homem com nome e sobrenome: Leôncio José Gonçalves. Foi como se pudesse vê-lo de novo, do jeito que me lembrava dele: com seu velho e puído saco, que descobri cheio com suas lembranças e fotografias, medalhas e bilhetes, com o que de mais feliz e precioso quis guardar de sua vida, recordações divididas somente com as árvores do meu parquinho, guardiãs de seus segredos.
Cheguei em casa arrasado. Parecia que havia perdido não só a chance de ter conhecido personalidade tão rica, mas também a chave para o equilíbrio de todo o universo.
Abracei meu filho, desliguei a TV, e a partir daquele dia, todos os contos de ninar incluíam a presença de um senhor sereno e bondoso, que carregava em um saco histórias de toda uma vida.
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