sexta-feira, janeiro 25, 2008
"Andar com fé eu vou"


Otacílio dizia-se “sem sorte”. Sim, sem sorte, pois todos sabem que dizer-se azarado, dá azar.

Não passava debaixo de escada, corria de gato preto, não mantinha espelhos com medo de quebrá-los e ganhar, assim, sete anos de... você sabe.
Evitava o número 13, levantar com pé esquerdo e praga de mãe, mesmo quando vem da dos outros.

Usava, espalhados pelo corpo, figa, patuá, medalhinha do Anjo da Guarda, retratinho de Nossa Senhora, fitinha do Senhor do Bonfim, trevo de quatro folhas, cabelinho de criança batizada no dia de Natal, ramo de arruda e pé de coelho. Esse último, desistiu de carregar. Se desse mesmo certo, teria salvo o pobre do coelho que guardava quatro.

Nada adiantava, a maré não virava ao seu favor. Perdera o emprego e, junto com o fim do dinheiro, a esposa e os dois filhos. Ameaçava ser preso por não ter como pagar a pensão alimentícia e nem a pensão da Dona Cota, onde vive e mal paga com os bicos que faz.

Os amigos e parentes se afastaram. Quem queria ao lado um imã ambulante de má sorte?

Quando Otacílio conseguia agendar uma entrevista de emprego, acordava atrasado, tinha o salto do sapato quebrado e o ônibus rebocado. Conseguia convencer uma garota a um encontro? A calça rasgava e a única camisa em bom estado ganhava um banho de espaguete.

Otacílio bem que se esforçava, coitado. Ano Novo era o primeiro a pular as 7 ondas, pedindo focas aos santos e orixás, sem distinção. Toda ajuda é bem-vinda para quem está na mão. Corria para casa, subindo a escada comendo uva e romã, tomando cuidado para não derrubar o vinho tinto com 3 grãos de arroz na camisa branca nova, comprada em prestações.

E tudo continuava na mesma, até a virada do último ano. Chateado, resolveu jogar fora todos os seus amuletos. Sentiu-se bem, com pelo menos 2 quilos mais leve. De camiseta vermelha desbotada, bermudão e chinelo de dedo, acompanhou os fogos pela TV, para espanto dos outros moradores.

E seguiu assim a vida. Meses depois o encontrei num shopping center, fazendo compras ao lado de uma bela morena. Admirado com a mudança, quis saber das boas novas, que não eram só boas, eram ótimas: Otacílio recebera de herança uma gorda quantia, deixada por uma tia avó que vivia distante, chegada a sua falecida mãe. No aeroporto, indo para a pequena cidade de sua afastada parenta, reencontrou Irene, namorada dos tempos de colégio, recém-divorciada e bem de vida.

Um amor antigo, uma herança ligada ao passado. O atual racional Otacílio não acredita mais em amuletos e superstições, preferindo levar a vida de uma forma mais tranqüila. Mas toda virada de ano passa de bermudão, chinelo de dedo e a velha e desbotada camiseta vermelha. Só por garantia.



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postado por Aleksandra Pereira às 10:53 AM |


5 Comentários:


At sexta-feira, janeiro 25, 2008 8:02:00 PM, Anonymous Anônimo 

Texto bom, já li antes e reli com prazer. Nem sorte, nem azar, apenas confiança em si mesmo.
Obrigada pela visita à nova casa.

At segunda-feira, janeiro 28, 2008 1:22:00 PM, Blogger Marcelo Novaes 

olá, Aleksandra.

Bons contos!

Se quiser conferir meu blog, será um prazer pra mim.

http://olugarqueimporta.blogspot.com/


Um abraço,

Marcelo.

At terça-feira, janeiro 29, 2008 10:25:00 AM, Blogger Denis Barbosa Cacique 

No começo, fique foi com dó desse Otacílio. Mas é só fazer de conta q o azar, digo, a falta de sorte, não existe, q ela finge q o Otacílio não existe.
Abraços!

At terça-feira, janeiro 29, 2008 1:42:00 PM, Blogger Denis Barbosa Cacique 

Olá, Aleksandra.
Obrigado pela visita!
Acho que vou contar com suas dicas caso leve o projeto do romance adiante. Que tal?
Abraços!

At quinta-feira, janeiro 31, 2008 9:36:00 AM, Anonymous Anônimo 

Menina...você está demais!
Beijos!!!!



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