Ela ainda sentia no dedo o calor da aliança recém-arrancada, última evidência dos sonhos desfeitos, daquele amor de telenovela.
Mas apesar dos clichês,
sua vida não era uma obra de ficção.
...
- Pois não, o senhor já pediu?
- Não, cara, ainda tô pensando. Escuta, aquele prato ali da outra mesa parece gostoso. (...) Moça? Com licença?
- Oi?!?
- Desculpa, mas que prato é esse que pediu? Parece bom.
- E é: strogonoff de frango, batatas com gergelim e arroz com ervas.
- Escolhido: será esse. Um igual, por favor.
- Pois não.
- Você quer experimentar?
- Posso?
- Tudo bem.
- Com licença... Humm, hummm. Muito bom. Obrigada.
- De nada.(...) Posso te perguntar uma coisa?
- Claro, somos íntimos agora, até comi do seu prato!
- (...) É o seu rosto. Você não me é estranho.
- Prazer, Lucas. Lucas Santa Helena.
- O Doutor Alberto da novela das 7, mas é claro!
- Entre outras coisas. Só que eu ainda não descobri o mais importante.
- O quê?
- O seu nome.
- Que cabeça a minha!!! Ana.
- Então, Ana, você gosta de Strogonoff, de jantar sozinha, e quando sorri ganha duas charmosas covinhas? Acho que isso já é suficiente pra mim.
- Suficiente pra quê?
- Pra que eu aceite seu pedido e me case com você.
- Você vai se casar comigo?
- Vou, já disse que aceito o seu pedido! Olha elas aí, são dessas covinhas que eu tô falando!
...
Tudo parecia tão perfeito. Lucas era o homem dos sonhos de Ana: inteligente, charmoso, engraçado. Mas Ana dera o azar de ser uma moça simples, de gosto simples, no meio do processo da criação de um mito.
O namoro em segredo não durou muito - o assessor de Lucas se encarregou de logo dividir a novidade. E toda a exposição que trazia o sucesso do amado lhe incomodava mais a cada dia: um simples passo seu até a rua garantia fotos de primeira página sobre qualquer coisa que estivesse fazendo – cortando os cabelos, pondo o lixo na rua, jantando com amigas.
Suas amigas, elas também mudaram. Antes eram poucas – raras, essa é a verdade; agora amigas de infância perdidas no tempo reencontram seus passos, seu endereço, seu perfil no Orkut. Retomam conversas esquecidas e adiadas com o frescor de algo deixado no ar, ali, agorinha, e que a distância e o isolamento não apagariam por nada.
De todos Ana sentia poder só contar com a amiga Raquel. Estudavam na mesma universidade, cresceram vizinhas de porta, as mães trabalhavam juntas. Raquel lhe ouvia, aconselhava, mas ainda assim o desconforto de Ana não diminuía.
As coisas realmente se complicaram quando começaram a pipocar notas dos encontros entre Ana e Lucas com fotos e detalhes íntimos, coisas que só eles saberiam. Ela sabe que não foi, Lucas jura também não; dali um tempo de novo, mesma coisa, mas como?
O namoro estremece um pouco com o crescendo da desconfiança, mas Ana sabe que ser namorada de celebridade não lhe virara a cabeça. Ao menos, a sua não: a mãe dava entrevistas na televisão, expondo suas fotos de infância; seu irmão descobrira recentemente um bem oculto talento artístico, e já confirmara inscrição para o próximo BBB e já abusava do manjadíssimo “você sabe com quem você tá falando?”.
Ela tentava levar sua vida como sempre levara, fazendo as mesmas coisas, seguindo os mesmo caminhos. Ainda insistia em fazer o trajeto trabalho-casa de ônibus, mesmo quando Lucas lhe disponibilizava seu carro e motorista – luxo pequeno, como ele gostava de dizer.
Seu pensamento discorria entre tantas novas informações que custou perceber o insistente olhar de duas senhoras nos bancos em frente ao seu:
- Ana, querida, tudo bem? Vem cá, me mata uma curiosidade: como é namorar o Doutor Alberto?
- Na verdade, eu namoro o ator que o faz.
- E não é a mesma coisa?
- Não, não é não.
- Deixa ela falar, Dirce!! Conta pra gente: o Doutor Alberto beija bem?
- Com licença, eu preciso descer, me desculpem, com licença, com licença.
- Toda.
- Tchau.
(...)
- Ela parece mais magra pela TV.
- Menina, também achei. (...) Orgulhosa, né?
Ana salta do ônibus, desorientada. Sua anteriormente pacífica vida de pernas para o ar, tudo por causa de um jantar dividido, um sorriso cercado de covinhas e um sim a uma pergunta que nem fora realmente feita, mas que urgia resposta.
Sem saber o que fazer, sem conseguir pensar, Ana liga para Raquel, derramando palavras e frases sem sentido. Raquel pede que se acalme, que fosse até ela, veriam juntas o que seria possível ser feito. Chegando ao trabalho de Raquel, Ana descobriu que mesmo sua melhor amiga não poderia lhe trazer conforto: esta lhe mostra a última edição de uma revista de fofocas recheada com fotos íntimas dela com Lucas. Foi o cúmulo do absurdo, a gota d’água. Ana não acredita que Lucas possa ter feito aquilo, logo agora que havia lhe pedido em casamento e seu anel... seu anel era tão lindo.
Ana larga o anel na mesa de Raquel e sai, desbaratada.
...
Ana saíra tão confusa que nem percebera a chegada de Lucas, revista amassada na mão, fincando o pé a cada passo.
Ele a vê saindo e, mesmo sem lhe falar, tem a certeza da traição da namorada.
...
Lucas fora até a redação da revista a pedido de Raquel. Ela sabia que era a possibilidade de Lucas pegar Ana ali, um flagrante, entregando fotos para a amiga jornalista. Não foi assim que aconteceu, mas assim que Lucas viu. Ele precisava ver o anel para confirmar a traição de Ana, e necessitaria de consolo e um ombro amigo.
E foi consolado por Raquel, que lhe mostrou várias fotos - tirada por ela mesma -, seguindo o casal. Lhe mostrou o anel. "Eu não queria te contar assim, mas foi a própria Ana quem planejou tudo", dizia, solícita ao amparar Lucas em sua dor.
Lucas sem saber mais em quem acreditar, aceita a versão de tão disposta amiga.
Raquel ganha Lucas e notoriedade. Programou o casamento para um mês antes da sua estréia como apresentadora e alguns meses depois da sua primeira capa oficial de revista, onde revelaria os "atributos que enlouqueceram o ator Lucas Santa Helena".
Ana não assiste mais televisão.
Chico Buarque (“Notícia de Jornal”)
em entrevista ao jornal Folha de São Paulo.
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