1.
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar…
2.
A água comove a pedra
que parece fremir levemente.
Na oscilação breve das marolas
Há homens malogrando
olhares vagos, indecisos, alongados.
3.
(Completa ausência de tempo.
O calendário se desfaz
nas sombras, na
brisa e na anatomia
recortada do estuário…).
Cambía todos os
tons esta angústia à flor da água.
4.
Não há gaivotas nem quaisquer
outros pássaros oceânicos.
Todavia, aquela espuma brilhante
sugere o roçar logo de algum.
5.
Vem do passado a romântica
sugestão de velas pandas.
Itinerários de descobertas,
roteiros de constelações,
ilhas remotas habitadas
por estranhos povos inocentes
--- pele morena, olhos ariscos,
porte severo, movimentos puros
de corpos ao vento e ao sol.
6.
Sirene arrepiando a epiderme do meio-dia.
7.
Silenciosamente pesados
firmam-se nas horas os navios,
fortuitos donos do porto,
transitórios proprietários
de metros de alvenaria
que fazem maior a tristeza
da imensa nostalgia portuária.
Ah! receber todos os adeuses,
todos os abraços, todos os olhares
de ida e volta e permanecer
ancorado na paisagem imutável.
Narciso de Andrade, o poeta do vento e das maresias. Mais de meio século de poesia, infelizmente com obra ainda inédita em livro. Seus textos são de uma sutileza e de uma riqueza poética nem sempre fácil de captar. Embora seus versos raras vezes tenham conseguido ultrapassar as fronteiras da província, Narciso esteve sempre ligado ao que acontecia no mundo em termos de poesia.
Sua principal influência veio do poeta andaluz Federico García Lorca. Depois, vieram Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa. Houve uma época, mais tarde, em que travou conhecimento com o trabalho de alguns poetas portugueses, especialmente José Régio, o maior nome do Segundo Modernismo português, herdeiro espiritual de Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro. Outro poeta luso que conheceu à distância foi Alexandre O´Neill, com quem trocava idéias por correspondência.
Para Décio de Almeida Prado, poeta que dirigiu o suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo, os versos de abertura deste poema, “Cais” constituíam umas das mais belas passagens que a poesia brasileira produzira.
Marcadores: Inspirações